Enfermagem FOC

Enfermagem FOC
Enfermagem Faculdades Oswaldo Cruz - Compondo uma Nova História do Cuidar

terça-feira, 17 de junho de 2014

O abuso sexual infantil intrafamiliar e a abordagem psicanalítica

Revista Aretê Saúde Humana,  Ano 2, Vol.2, Abril / Maio/Junho  Série 2014 17/06  p.07
O abuso sexual infantil intrafamiliar e a abordagem psicanalítica
Antônio Marcolino do Nascimento[i]

1 – INTRODUÇÃO
A violência sexual é global. Ela ocorre em todas as culturas, em todos os níveis da sociedade e em todos os países do mundo. Embora a maioria das vítimas sejam mulheres, homens e crianças, de ambos os sexos, também passam por esta experiência. (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2003). Uma pesquisa realizada pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo apontou que as maiores vítimas do abuso sexual são as crianças menores de 12 anos de idade. Elas representam 43% dos 1.926 casos de violência sexual atendidos pelo Programa Bem-Me-Quer, do Hospital Pérola Byinton, em 2007. Neste mesmo ano, foram notificados 517 casos de abuso contra crianças de 12 a 17 anos e outros 563 com vítimas maiores de 18 anos. (SÃO PAULO SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE, 2008).
A legislação penal brasileira, ao promover a punição com violência sexual, comina a pena valorando essencialmente a agressão física, que tem que ser comprovada por meio de exames médico-legais, chamados de Exame de Corpo de Delito, que, neste caso são de duas modalidades, a saber: conjunção carnal e ato libidonoso diverso da conjunção carnal. Os critérios utilizados na perícia não atendem às vitimas de abuso sexual, quando se trata de crianças e adolescentes, uma vez que em sua totalidade não apresentam vestígios que permitam a configuração material do abuso sexual e os quesitos a serem verificados são incompatíveis com a realidade infanto-juvenil. (SILVA JÚNIOR, 2006).
Por conjunção carnal entende-se a inclusão do pênis na cavidade vaginal. As relações homossexuais incestuosas ficam excluídas desta categoria, sendo como as demais práticas sexuais diversas da conjunção carnal, considerada ato libidinoso.(PINTO, sd)
Pode-se pensar na violência intrafamiliar como toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consangüinidade, e em relação de poder à outra. Portanto, quando se fala de violência intrafamiliar deve-se considerar qualquer tipo de relação de abuso praticado no contexto privado da família contra qualquer um de seus membros. Deve-se ainda ressaltar que o conceito de violência intrafamiliar não se refere apenas ao espaço físico onde a violência ocorre, mas também às relações em que se constrói e efetua. (CESCA, 2004). Diante do contexto apresentado, qual seria a contribuição da psicanálise a vitima de abuso sexual na infância?
2 - DESENVOLVIMENTO
Brandão Júnior, (2008) ressaltou que uma particularidade da psicanálise com crianças seria que estas não chegam para o tratamento em nome próprio, mas pela queixa de outra pessoa ou instituição. Assim há algo a ser diferenciado quando o analista ouve o relato de uma criança, pois há o perigo dele igualar a queixa do adulto ao sofrimento da criança. Há uma demanda clínica produzida pelo paciente ao analista e a demanda da família, que diz respeito a uma outra coisa.
Fuks, sd reportou que o abuso sexual infantil se configura como um fenômeno complexo que exige uma estratégia de abordagem multidisciplinar no curso da qual são diversas as questões que se tornarão prementes. A transmissão de informação, por exemplo, imprescindível para a construção e desenvolvimento de um campo de pesquisa integrado, exige a superação de múltiplas dificuldades. Contudo, essa superação não depende apenas do uso de diferentes linguagens ou modelos e procedimentos. Há obstáculos relativos à própria natureza do tema em questão. A descoberta de um caso de abuso provoca reações fortemente emocionais na família da criança, mas também nos profissionais intervenientes. Incide sobre um conjunto de valorações, idéias e sentimentos a respeito da família, a sexualidade e a criança que nos são caras.
Brandão Junior, (2010) observou que atualmente há uma pregnância de um determinado modelo de atendimento construído ao longo do tempo e que repete, sem questionamento, as tentativas de adequação e normatização da infância, do sexo e das relações entre os adultos e as crianças. O autor propôs oferecer, tendo como base as obras de Freud e Lacan, uma abordagem do abuso sexual que considera a divisão da criança pelo desejo, tornando-a sujeito (até mesmo de seu sofrimento) e fazendo contraponto à ingenuidade e à incapacidade (plenas) atribuídas aos menores, crianças ou adolescentes, atribuição que é comum em algumas práticas de assistência e argumentações teóricas atuais.  No artigo o autor apresenta a definição de sujeito – introduzido na psicanálise por Jacques Lacan – para acolhimento do sujeito-criança vítima de abuso sexual. No artigo, o autor lembra que a Psicanálise nasceu como um campo do saber que subverteu os métodos empregados pela ciência da época, propondo uma nova lógica de operar e, consequentemente, um novo manejo clínico. Freud decide utilizar um método de escuta que difere e questiona as práticas médicas de sua época e que já está incorporado à prática da psicanálise questionar concepções que paralisam e domesticam sujeitos
A possibilidade ou a suspeita de abuso pode levar a um ensurdecimento defensivo, no entorno imediato, de uma criança que está dando pequenos indícios da experiência que está atravessando, já é sabido. Entretanto, uma vez reconhecido e revelado o fato do abuso, as reações defensivas podem persistir, imperceptivelmente, nas dificuldades para compartilhar as informações, nos conflitos de opiniões sobre responsabilidades e culpas dos adultos envolvidos, na definição do que é prioritário nas intervenções a serem feitas. Assim, um risco dessa multiplicidade de abordagens e discursos sobre o abuso é levar a criança que o padece a ficar des-subjetivizada, passando a ser só uma vítima, não se compreendendo a importância de propiciar e acompanhar uma elaboração, por assim dizer, em primeira pessoa do singular. (FUKS, sd).
A psicanálise da criança vítima de incesto é imprescindível para a assunção da Lei simbólica. Na análise do inconsciente e da transferência essa criança procurará sair do papel de criança mítica da cena primitiva, do lugar congelado que a colocaram na triangulação edípica e procurará restaurar-se como sujeito por influencia desse campo transferencial que lhe possibilita a fala verdadeira sucessiva a elaborações de seu passado traumático e de emoções precoces com seus pais tutelares, reconfigurando a sua imagem inconsciente do corpo. A clínica doltoniana frisa a importância da castração edípica ser verbalizada para a criança e o adulto que dá essa castração precisa acreditar nela e também estar submetido a essa mesma Lei, assim a criança suporta a castração porque constata que o adulto que a dá também é marcado pela mesma proibição. Há questionamentos quanto a possibilidade de castração por parte do analista. A castração deve ser feita de preferência pelo casal parental ou por um deles, seja mãe ou pai, contudo Dolto afirmou que a escola também poderia contribuir neste sentido na figura do professor. (MOUAMMAR, sd.)
Dolto verbalizou como poderia ser feita a interdição ao incesto: “ ...é impossível para sempre que um filho ame sua mãe como um outro homem a ama. Não é porque você é pequeno e eu grande, é porque você é meu filho e que nunca um filho e sua mãe podem viver a união sexual e engendrar crianças” (Dolto, 2002 citada por MOUAMMAR, sd). O mesmo deve ser dito à menina na relação com o seu pai, a impossibilidade de tê-lo como homem e pai de seus filhos. Essa interdição deve ser estendida a toda a família, aos irmãos e irmãs, tios e tias, avôs e avós e primos e primas. Dolto afirma que é assim que a criança ouvirá aquilo que irá introduzi-la na ordem da humanização genital. (MOUAMMAR, sd.)
Na Psicanálise a sexualidade da criança ganha um outro estatuto, não são vistas mais como desprovido de sexualidade, ocupam a posição de “brinquedos eróticos” dos adultos e por isso são em sua origem e nascimento, objetos onde estes vão depositar libido e desejo, estimulando-as e inserindo-as num mundo de linguagem da qual terão que dar contas, neste momento localizamos o trauma primordial. Disso, do  em que são colocadas pelo Outro darão uma resposta que invariavelmente envolverá o que introjetou da figura desses primeiros cuidadores, assim constitui-se o complexo de Édipo. A relação com o Outro é traumática, de forma que elaboramos uma articulação possível para a atuação das cenas de abuso: trauma- diante deste sujeito vai responder com a fantasia, que o protege de um real avassalador, impossível de colocar em palavras, o sujeito se insere no mundo dos humanos, humaniza-se, passa a ser regido pela lei da proibição do incesto, dando origem a uma sexualidade perverso polimorfa, indicando que não há um desenvolvimento natural do humano, que não poderá mais ter relações sexuais com a mãe, por exemplo, como um cachorro faria, atua a cena incestuosa na realidade, podendo ser movida pela culpa, assim, ao contrário do que se postula em algumas abordagens, diante da culpa o sujeito atua e dá sentido a esta, a culpa é anterior e não posterior ao ato. A criança pode cometer o ato sexual incestuoso, “criminoso”, para dar conta do desejo incestuoso pelos pais, para gozar e satisfazer suas pulsões, para se sentir desejada/fálica; para repetir a atitude dos pais e até mesmo realizar a fantasia de ser objeto do outro, por exemplo, sentindo-se usada e mal tratada, repetindo a forma com que entendeu ser amada. Portanto, os motivos que levam uma criança a atuar sua fantasia sexual são muitos e devem ser analisados caso a caso, pois acreditamos que é a partir dessa escuta, singular, que poderemos avançar e trabalhar como o fim de que os sujeitos envolvidos nessas cenas possam se responsabilizar por seus atos, não só pelo abuso sexual, mas por seu desejo e pela fantasia que os sustenta.(BRANDÃO JUNIOR, 2008).
3 – CONCLUSÕES
A violência sexual é global. Ela ocorre em todas as culturas, em todos os níveis da sociedade e em todos os países do mundo.
É denominada intrafamiliar quando cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consanguinidade, e em relação de poder à outra.
O abuso sexual intrafamiliar ocorre por qualquer contato ou interação de uma criança ou adolescente com alguém em estágio mais avançado do desenvolvimento, na qual a vítima estiver sendo usada para estimulação sexual do perpetrador. A maior parte  é cometida pelos próprios pais das vítimas, seguido de perto por outras pessoas que dispunham da confiança das crianças como, por exemplo, irmãos. Raramente um abuso desta ordem é cometido por um estranho com predomínio de crianças do gênero feminino com faixa etária predominando entre os 7 e 8 anos de idade.
Dentre os efeitos do abuso sexual intrafamiliar infantil, evidencia-se a dificuldade de relacionamento interpessoal, ansiedade, dificuldade em dormir, masturbação e o conhecimento sexual precoce, e dificuldade de concentração.
Em substituição ao modelo de abordagem terapêutica, que repete, sem questionamento, as tentativas de adequação e normatização da infância, do sexo e das relações entre os adultos e as crianças propõe-se um tratamento com uma abordagem do abuso sexual que considera a divisão da criança pelo desejo, tornando-a sujeito (até mesmo de seu sofrimento) e fazendo contraponto à ingenuidade e à incapacidade (plenas) atribuídas aos menores, crianças ou adolescentes, atribuição que é comum em algumas práticas de assistência e argumentações teóricas atuais.
Os motivos que levam uma criança a atuar sua fantasia sexual são muitos e devem ser analisados caso a caso, pois acredita-se que é a partir dessa escuta, singular, que pode-se s avançar e trabalhar como o fim de que os sujeitos envolvidos nessas cenas possam se responsabilizar por seus atos, não só pelo abuso sexual, mas por seu desejo e pela fantasia que os sustenta.
4 - REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Elaine Christovam de. Atendimento psicanalítico a crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual.Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 21, n. 4,dez. 2001 .  Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932001000400008&lng=pt&nrm=iso. Acesso em 10 de maio de 2015.
BRANDÃO JÚNIOR, Pedro MoacyrChagas. O sujeito abusado da Psicanálise. 2008. 108f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) –Isntituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Acesso em 09 de maio de 2011.
_________; RAMOS, Patrício Lemos. Abuso sexual: do que se trata? Contribuições da psicanálise à escuta do sujeito. Psicol. clin., Rio de Janeiro,  v. 22, n. 1, June  2010. Disponível em:  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652010000100005&lng=en&nrm=iso Acesso em 09 de maio de 2015.
CESCA, Taís Burin. O papel do psicólogo jurídico na violência intrafamilar: possíveis articulações.Psicol. Soc., Porto Alegre, v. 16, n. 3, dez. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822004000300006&lng=en&nrm=iso. Acesso em 11 de maio de 2015.
FUKS, Lúcia Barbero. Conseqüências do abuso sexual infantil. Disponível em <http://www2.uol.com.br/percurso/main/pcs36/36Fuks.htm. Acesso em 09 de maio de 2015.
HABIGZANG, Luísa Fernanda et al . Avaliação psicológica em casos de abuso sexual na infância e adolescência. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 21,  n. 2, 2008. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722008000200021&lng=en&nrm=iso. Acesso em 10 de maio de 2015.
MATIAS, Delane Pessoa. Abuso sexual e sociometria: um estudo dos vínculos afetivos em famílias incestuosas. Psicol. estud., Maringá, v. 11, n. 2, ago.  2006 . Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722006000200008&lng=en&nrm=iso Acesso em 09 de maio de 2015.
MOUAMMAR,  Christiane Carrijo  Eckhardt.  O abuso sexual infantil e a clínica psicanalítica em um breve encontro com a Psicanálise de Françoise Dolto: revisando o incesto. Disponível em: < http://www.psicopatologiafundamental.org/uploads/files/iii_congresso/temas_livres/o_abuso_sexual_infantil.pdf . Acesso em 10 de maio de 2015.
PINTO, Maria Cristina Domingues.  Abuso sexual- incesto. Disponível em:<www.gtpos.org.br/Images/boletim/textocristina.pdf > Acesso em 10 de maio de 2015.
PRADO, Maria do Carmo Cintra de Almeida; PEREIRA, Ana Carolina Covas. Violências sexuais: incesto, estupro e negligência familiar. Estud. psicol. (Campinas), Campinas, v. 25, n. 2, June 2008 . Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2008000200012&lng=en&nrm=iso. . Acesso em 11 de maio de 2015
SÃO PAULO SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE-SP. Crianças são as principais vítimas de violência sexual. 10 de Março de 2008. Disponível em: http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia.php?id=93526.  . Acesso em 11 de maio de 2015
SILVA JÚNIOR, Álvaro Pereira da. Dano psíquico em crianças vítimas de abuso sexual sem comprovação de ato libidinoso ou conjunção carnal. 2006. 154 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/2513 . Acesso em 12 de maio de 2015
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO) Guidelines for medico-legal care for victims of sexual violence. Geneva; 2003. Disponível em:http://whqlibdoc.who.int/publications/2004/924154628X.pdf. Acesso em 12 de maio de 2015.




[i] Psicanalista e Professor da Disciplina Desenvolvimento do Ser II do Curso de Enfermagem das Faculdades Oswaldo Cruz em São Paulo SP. amnascim@uol.com.br